Infelizmente, mais uma vez, todo o vale do Mondego sofreu mais uma cheia que destruiu bens, meios de produção industriais e agrícolas, afetou transportes e deixou com o coração nas mãos vários milhares de pessoas. Tudo isto, para além de desanimador, é absolutamente desesperante. É verdade que no Inverno chove e, apesar de darem nomes fofinhos às intempéries, os efeitos do mau tempo podem resultar em estragos significativos. No entanto, construiu-se há cerca de 40 anos um sistema, denominado Empreendimento de Fins Múltiplos do Baixo Mondego, que visava controlar a natureza rebelde do rio Mondego e seus afluentes, evitando assim as cheias frequentes que alagavam a cidade de Coimbra e as populações até à Figueira-da-foz. Esse sistema, apesar de muito bem pensado, não é, nem poderia ser, infalível, mas foi planeado para ser capaz de evitar a maioria das situações que davam origem a cheias.
Na verdade, desde que entrou em funcionamento, e enquanto o sistema era novo (não eram críticos os efeitos de ausência de manutenção), não houve problemas de maior. No entanto, em 2001, regista-se de novo uma grande cheia em todo o vale do Mondego.
Nessa altura, assim como nas cheias seguintes de 2016 (duas consecutivas nesse mesmo ano), os relatórios de análise da situação apontavam causas gravíssimas:
1) Total ausência de manutenção do sistema, o que, como é fácil de entender, potenciava falhas nos equipamentos, e com isso eventos graves de cheias e perdas de bens materiais, para além de colocar em risco a vida humana, por deficiente funcionamento do sistema;
2) O facto de ser uma obra inacabada, isto é, não tinham sido regularizados, como fazia parte do projeto original, os vários afluentes do Mondego, faltavam equipamentos (por exemplo, das 6 bombas de alto débito planeadas para estar a jusante do açude e que deveriam retirar do rio aproximadamente 500 m3/s de água, só uma tinha sido instalada);
3) O facto de ser uma obra com 40 anos, projetada num determinado cenário, tendo em conta a ocupação do território e as opções tecnológicas da altura. Todas as obras de engenharia têm de ser avaliadas, de tempos a tempos, revisitando os projetos, de forma a adaptá-las à nova realidade e melhorar o seu desempenho tendo em conta novas soluções tecnológicas. Em 40 anos, para além de não ser mantido, este empreendimento não foi revisitado;
4) O facto de não existir nenhuma entidade de gestão que permitisse garantir as tarefas acima mencionadas, mas também monitorizar o rio e os seus afluentes e instalar sistemas de vigilância essenciais para uma resposta célere, segura e eficaz. Uma entidade de gestão que tivesse ainda a autoridade necessária para avaliar qualquer obra que fosse planeada na sua área de intervenção, acautelando assim a eficácia global do sistema;
5 ) Não foi ajustada, à medida da evolução dos tempos e das novas circunstâncias, a forma como eram/são geridas as barragens do Mondego, nomeadamente a Aguieira, exigindo parâmetros de gestão não somente economicistas e mais adaptados ao dia-a-dia das populações. Por exemplo, existem relatos, não confirmados, de que nesta cheia de 2019, a barragem da Agueira esteve em risco sério de colapso. O que torna incompreensível o cancelamento, em 2016, da Barragem de Girabolhos. Na verdade, essa barragem, que fazia parte do plano original de intervenção no rio, foi cancelada em 2016, também, por este ministro que agora queria mover aldeias. O presidente da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva, diz que a obra não avançou em 2016 por “pressão política” do Bloco de Esquerda e do Partido Ecologista Os Verdes, que queriam rever os termos do acordo que já tinha sido assinado. É importante que isso seja esclarecido com urgência.
Acresce que o rio Mondego, por exemplo, sofreu obras de desassoreamento em 2017 e 2018. No entanto, os inertes removidos do leito do rio foram usados para fazer um aterro gigantesco a jusante do açude e uma parte para uma nova praia fluvial a norte do açude. A QUERCUS alertou nessa altura para a insensatez desse aterro, fazendo vários avisos de que os efeitos seriam os de potenciar novas cheias e dificuldades nas terras a jusante de Coimbra. Bateram na porta errada, ninguém lhes ligou. As consequências estão à vista.
Para além disso, com incêndios, ausência de limpeza das matas, total desordenamento da floresta, etc., os resíduos florestais, matéria ardida, etc., vão parar ao rio sempre que as condições climatéricas são adversas. Basta ver a quantidade enorme de árvores partidas que o rio transportava, muitas das quais são ainda visíveis nos pilares da Ponte Pedonal, da ponte de Santa Clara e no Açude. Tudo isso contribuiu para esta cheia, para a pressão sobre os diques e para o colapso de todo o sistema.
Ao contrário do que disse o insensato Ministro do Ambiente, que, depois de ter autorizado um Aeroporto Internacional no estuário do Tejo, queria mudar de sítio as aldeias de Montemor, não precisamos de mudar as aldeias de sítio. Precisamos que aprendam que não podem construir em leito de cheia, que temos de respeitar o rio, mas acima de tudo, que temos todos de exigir que o sistema de engenharia desenhado para o controlar seja revisitado, revisto, finalizado, mantido, gerido e monitorizado. Isso é essencial para o nosso futuro e não pode continuar desta forma. São os cidadãos que o têm de exigir, pois por iniciativa das autoridades públicas isso não irá acontecer, como os factos demonstram.
Texto publicado no Diário As Beiras de 28 de Dezembro de 2019
Agradecimentos: Miguel Franco e Álvaro Cadima, pela cedência de imagens.